sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Conto de Natal

A menina morava numa cidade pequena, numa casa com quintal que ia até o outro lado do quarteirão. No quintal tinha de tudo: galinha, árvore de fruta, horta, cachorro. E pinheiros. Pinheiros que a mãe da menina cultivava todos os anos para vender na época de Natal. Quando chegava o começo de dezembro, ela mandava o marido separar algumas mangas fresquinhas da melhor árvore do quintal e colocar numa sacola. "Aquela senhora com os dois meninos vem hoje!".

O carro encostava em frente à casa de quintal grande, num bairro afastado da cidade, e dele saía a senhora com os dois meninos. Vinha também o irmão dela, alto e forte, para levar o pinheiro. Às vezes vinham de kombi, a kombi da empresa de gás do marido da senhora, que nem era tão senhora assim. E os dois meninos desciam junto, na carreira, e corriam para o fundo do quintal. Enquanto a senhora que morava no centro da cidade escolhia a árvore mais bonita, os meninos subiam nas árvores, gritando de alegria, e comiam todas as frutas que podiam. A senhora e a mãe da menina trocavam dois dedos de prosa e a dona da casa oferecia a sacola, cheia de mangas fresquinhas. Presente cheiroso de Natal. O irmão da senhora então pegava nas costas o pinheiro e saía reclamando, "isso pinica, pô". Os meninos vinham atrás, rindo e brincando, com cheiro de fruta.

A menina via e já esperava a mesma cena todos os anos. Tempos depois, na cidade pequena, precisou mudar de escola para seguir a vida. Ali, se encantou com os olhos verdes de um rapaz. Um dia, depois de trocas mútuas de expectativas, saíram. No final da noite, ele a deixava em casa, como todo bom rapaz de cidade pequena deve fazer. E, ao encostar no meio-fio, fez o comentário: "nossa, é a casa dos pinheiros".

E a menina, num segundo, olhou e reconheceu naqueles olhos verdes as mesmas risadas do menino que invadia sua casa todo dezembro. E viu que já conhecia, desde sempre, seu presente de Natal.

(15.12.2006)

sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Hoje

Meus olhos hoje vêem inquietação e coragem. Vêem uma terra que não pára, que não se olha, que corre. Hoje meus olhos vêem um dia claro que forja idéias. A menina que passa levando um menino no ventre. A outra que pensa no menino que é luz dos seus olhos. Alheias a tudo, tão parte do mundo. Vejo a roda da fortuna girando, nos levando para a correnteza. Vejo sonhos subindo e queimando ao sol, vejo nuvens abaixo de quem voa de avião. Vejo os olhos castanhos de um homem que é menino, que me olha, que fala comigo. Algo muda naquele segundo, mesmo que ele não saiba, não sonhe, não queira. Mesmo que eu não queira nada, só o instante de paz do sorriso escondido no turbilhão, escondido a ponto de nós dois não sabermos. Vejo amigos se afastando, tentando olhar por cima do muro. Meu olhar aflito procura a todos, quer guardá-los no bolso, levá-los na alma. Vejo o rosto da minha mãe me sorrindo. Os olhos verdes do meu pai olhando por mim. Sinto minha alma crescer e trombar com tantas outras almas furiosas lá fora. Meu coração avisa que está vivo. Quero agradecer a todos pela consideração e serviços prestados aos meus mais puros sentimentos. Olho pela janela e vejo o céu azul, o mesmo e tão diferente da adolescência. O instante que passa me comove, me amedronta e me encanta.

Sinto vontade de chorar. Mas pego o telefone e vou fazer ligações.

(15.09.2006)

terça-feira, 22 de agosto de 2006

Términos

Algumas coisas, quando acabam, nos deixam meio sem chão.

Outras a gente nem percebe que terminaram. Ainda estavam ali? Puxa.

Algumas acabam e insistem em continuar lá, no meio do caminho. Vai a alma, fica o corpo.

Outras morrem, mas lhes falta a coragem de avisar. A gente é que precisa decretar o fim, sacramentar uma decisão que nem foi nossa. Dão duplo trabalho.

E tem aquelas que a gente faz de tudo pra que não morram. Respiração artificial, massagem cardíaca, choque elétrico, lágrimas, risos, súplicas. Às vezes adianta, às vezes não.

Às vezes é melhor que elas terminem, mesmo que a gente não queira. Às vezes não.

Tem coisas que, só quando acabam, é que a gente vê o baita volume que faziam na vida da gente.

E tem outras que, embora se suponha finitas, nunca terminam. Ficam escondidas, à espreita.
Quando menos esperamos, nos surpreendem. De novo e de novo.
Às vezes, em plena luz do sol. Às vezes, no silêncio do fundo do coração.

(22.08.2006)

segunda-feira, 14 de agosto de 2006

Nessa época do ano, quando o frio vem chegando...

Parafraseando a canção dos Paralamas, lembro-me de que nessa época do ano, quando o calor (normalmente) vem chegando, me vem também um banzo de anos idos - quando o solzinho começava a aparecer, tímido, pós-vento frio de junho/julho. Quando adolescente, sempre gostei do inverno. Morando no interior, inverno era sinônimo de tirar do armário aquele casaco pesado, os agasalhos de lã e dar aquela desfilada básica pela escola, ostentando os modelitos. Com sorte, tínhamos também quentão, vinho quente e uns programinhas invernais cheios de promessas, para logo ou para longe. Trago boas lembranças dos meus invernos adolescentes, apesar das temperaturas nem sempre amigáveis - pois o interior paulista também saber ser beeeeem frio quando quer.

Apesar disso, depois dos fantásticos vinte dias de gelo anuais, vinha de novo o sol e aquele arzinho de final de ano se aproximando. Com sorte, uns passeios ao ar livre e as voltinhas de bicicleta no final de tarde – uma tarde iluminada que invadia a noite. Eram oito horas e o sol ainda lá, com preguiça de se despedir.

Naquela época o efeito estufa e as promessas de desgraças climáticas não assustavam tanto também. Uma lembrança é infalível - o cheiro dos finais de tarde e das manhãs desses meses de transição. Sim, as tardes e manhãs tinham perfume característico. Era um cheiro que ficava no ar da cidade inteira, um cheiro de sol se abrindo no estio. Pode existir isso? Nas minhas tardes adolescentes, sim.

Depois vim para São Paulo e, naquele meado da década de 1990, comecei a brigar com o frio. Aqui o inverno era maior do que vinte dias, o vento gelado cortava mais. Minha pele se ressentia e meus pulmões reclamavam da temperatura que não era tão de brincadeira. E eu passei a não ter mais tanta simpatia pela estação. E a gostar ainda mais dos ventos de agosto, que traziam o solzinho tímido e aquele cheiro tão característico – sim, eu ainda o sentia nos finais de tarde do meu apartamento, lembrando lugares anteriores.

Hoje em dia, não encontro mais aquele inverno gélido de dez anos atrás, dos meus primeiros anos de volta à Paulicéia. O tempo enlouqueceu, como todos sabemos. De vez em quando aparece uma frente fria que deixa todo mundo gripado para, dias depois, ceder lugar a um calor senegalês em pleno julho. Mas eu, sem sentir cheiros há umas duas semanas mais ou menos, sei que aquele perfume das minhas lembranças está no ar, ainda. Sei que, quando essa gripe passar, ele virá me saudar o segundo semestre, que já está quase se adiantando no calor.

(14.08.2006)