sexta-feira, 30 de março de 2007

Conto de viagem

Ela o encontrou na curva do caminho. Ele, perdido entre curvas, bailando sozinho na dança do tempo. Ela trazia feridas de outros tempos que ainda doíam, embora escondidas. Ele se ria, sonhava e levava consigo temores e segredos. A alegria de saber-se forte o conduzia. O sorriso o resguardava.

Ela teve medo. Depois, estranha sensação de encontro em mundo distante. Pequena bolha de amor que a protegia, riscava sua alma a fresco. Ela se sentiu bailando no vento do tempo que não era seu.

Quando sua alma, feita corpo, reclamou atenção, ele lhe curou as feridas, desbravou a muralha de seus modos, lhe cuidou como pai. No lugar que já lhe era casa, ela se viu presa na velha rede.
Não quis dar nome ao que já sabia nascido. Experimentou o pesar, a dor e a surpresa de se descobrir cativa em tão insuspeito laço.

Na curva seguinte, despediram-se. Um abraço de alma sela o encontro. Ele chora. Ela, em silêncio, sabe que seu peito pesará por doce tempo.
Coração é desses que, tendo querências, às vezes as aparta para que continuem vivas. Às vezes, as faz nascer apenas para que se prove, generosa, a grandeza da vida.

(30.03.2007)

quarta-feira, 28 de março de 2007

Como bumbum de bebê

É assim. Um dia você está lá, despreocupadamente andando entre suas encanações nem sempre producentes e seus pensamentos muitas vezes inúteis. E surge, virando a esquina como um ladrão em fuga, um pedaço das coisas que já eram, que ficaram pra trás. Surge fazendo cócegas nas suas idéias fixas, mostrando que ainda resta aí algum gás pra confundir o ambiente, que tudo isso ainda pode provocar algum sorriso, ainda que torto, no rosto da audiência.

Aquela piada que você já achava sem graça, que dava traço no ibope. Aquela poeira que você varreu pra baixo do tapete há tanto tempo que nem se lembrava mais. Ela voa de novo no seu olho, fazendo você esfregar o rosto e fitar surpresa o espelho, procurando o que causou tamanha confusão. E você resolve pagar pra ver, virar (de novo, ai) o rosto e conferir, afinal, o que tanto ela quer te dizer. Pronto. Lá está você de novo, girando em círculos, ainda que por instantes.

E você sabe que não vai dar em nada, provavelmente 99,97% de chance de que tudo continue na mesma e de que, dentro de alguns dias, a poeira volte pra debaixo da cama e você siga a vida como sempre, de volta às suas novas e evoluídas preocupações. Mesmo assim, você faz um exercício de imaginação e tenta, ainda uma vez, rir da mesma piada. Torcendo, é claro, pra que haja platéia para a manifestação de seu dom palhaço.

Tudo bem. Se não houver palmas, pelo menos você deu uns sorrisos a mais na terra dos devaneios. Porque como todos sabem hoje em dia, sorrir evita as rugas.
E sonhar, isso eu já sabia desde os meus 15 anos... não custa mesmo quase nada. ;)

(28.03.2007)

quarta-feira, 21 de março de 2007

Não se reprima

Foi hoje, na hora do almoço. Alguém puxou um papo do tipo "como estamos velhos" e todo mundo desandou a dar suas contribuições. "Ah, eu ouvi só vinil até os 16 anos". "Ah, eu passei a infância e adolescência todas sem saber o que era um celular. Internet, só na faculdade". "Ah, eu tinha um disco compacto da novela Estúpido Cupido".

É claro que não demorou para nos lembrarmos do clássico dos clássicos da infância 80. Sim, eles, que fizeram milhares de pessoas se estapearem em frente ao Macksoud Plaza em algumas tardes oitentistas, em sua vinda ao Brasil. Eles, que provocaram engarrafamentos em estradas no eixo sul-sudeste do país. Eles, que foram responsáveis pelos maiores micos infantis da geração de garotas hoje na faixa dos 25-30.

Mas a gente não lembrou deles assim de cara, não. Antes passamos por referências mais atuais (e copiadas dos pais do movimento, claro), tipo New Kids on the Block e Backstreet Boys. E nem foi no momento-confessional "eu fui uma seguidora de Boys Band" que nos lembramos deles. Foi, sim, na hora dos compactos de vinil, quando eu ganhei o prêmio de bizarrice sonora do ano com a seguinte declaração:

"Eu tinha um compacto de vinil flexível, de plástico, transparente, que ganhei numa promoção da Tang. Vinha com apenas uma música e antes de começar, tinha a declaração de um deles (acho que o Ray) num portunhol incrível: 'Oy, eu sou o Ray, e estoy mucho contente de cantar para nostros maravilhosos fans do Brazil'."
A canção em si não era das mais famosas, nem das que lembramos primeiro hoje em dia, quando falamos desses áureos tempos. Mas eu me lembro muito bem, era uma cujo clip eu tinha visto acho que no Fantástico. Nossos heróis porto-riquenhos apareciam numa espécie de navio pirata, vestidos de corsários espanhóis, e o filminho tinha direito a mocinha amarrada no mastro, tiros esfumaçados de canhão e uns bandidos fake em terríveis cenas de luta. Tudo para que Robbie, é claro, pudesse salvar o dia e cantar o refrão em inglês, no final do clip, no ouvidinho da mocinha. Uau.

Entre lembranças do show assistido pela tevê (meu pai, desde aquela época, tinha aversão a multidões e se negou terminantemente a me levar) e álbuns de figurinhas perfumadas, com as fotos dos moços em letrinhas douradas, deixo aqui uma saudação a todos que testemunharam a passagem desse verdadeiro marco histórico trash-pop pelo país. Porque todo mundo tem seu lado negro da força pra confessar. E nem só de RBD vive o homem. :)

PS - Empolgada em colocar aqui o link para a obra-prima cinematográfica que citei neste post, localizei no YouTube um clip bem diferente daquele que minha memória guardava: realmente há o navio, e as piratas, mas os moços em questão estão vestidos com as roupas deles mesmos (todas iguais, no melhor estilo Power Rangers), e apenas caminham por um forte à beira-mar enquanto as "moças-piratas" os seguem com o olhar. Nada de lutas ou tiros de canhão... prova de que nem sempre se pode confiar na memória de uma criança de 8 anos, ou de que, aos 8 anos, a gente tem mesmo o poder (bendito) de sair do chão muito mais fácil. :)

(21.03.2007)

terça-feira, 13 de março de 2007

Palavras

Penso que palavras são pequenas fadas, travestidas de sons. Perigoso mexer com elas. Ao menor sinal de indecisão, se rebelam e saem na carreira, arrastando incautos sentimentos. Larápias, bolem com pensamentos e vontades. Fazem cócegas nos desejos, confessos ou não.

Bravas, as bichinhas. Belas filhas, formosas meninas. Mas, gatas caprichosas, decidem sozinhas o momento de fuga. Perfazem vôos lépidos sobre nossas cabeças, com sorriso maroto de fadas, diante da estupefação geral. Não precisam de sentido: invadem mentes e olhos. À guiza de encantamento, criam redemoinhos no ar. 

Mas voltam à casa, ao ouvir nosso choro, para fazer-se de abrigo. Com a graça de crianças novas, nos pegam pela mão e nos lembram de que nós mesmos, anjos caídos, construímos casinhas no ar. Moradas de fadas.

Caso seja imperativo tirar-lhes a amplidão, é mister fazer bom acordo. Ou vibrarão suas asas, perenemente, na mente do algoz iludido. Persistindo as amarras, chegarão ao coração - medida extrema, geralmente incurável.

Eis o preço a ser pago pelos adestradores de fadas: palavras esvoaçando na garganta, embotada em pó de pirlimpimpim. 

(13.03.2007)

quarta-feira, 7 de março de 2007

Manual de não-etiqueta em relacionamentos

Eu acho assim:

Que todo mundo tem direito de se apaixonar sem ficar se perguntando se tá certo ou se tá errado.

Que todo mundo pode se perguntar se fez a escolha certa alguma vez na vida, quando achar que precisa. E mudar o rumo do jeito que der, na hora que der. Sendo sincero consigo e com os outros. E sem ser crucificado ou execrado por isso.

Que as escolhas certas num momento podem não ser escolhas certas pra sempre. E nem por isso o tempo em que foram válidas merece ser desconsiderado.

Que ninguém devia ter vergonha de andar de mão dada com seu amor na rua.

Que o amor, salvo em casos de exagero ou doença, não pode fazer mal. O preconceito, a falsidade, a hipocrisia sim.

Que ser "normal", por outro lado, também não é passível de crucificação. É bacana ser louco e ser donzela, barbarizar e sonhar com o príncipe. É bacana ser a gente. E respeitar quem está em volta.

Que ninguém deveria falar essas coisas por pose e mostrar lados podres virando a primeira esquina.

Que dá pra defender os outros sem, necessariamente, ter sentido o que eles sentem na pele. Dá pra defender a compreensão.

Que dói se decepcionar e que a gente tem o direito de ficar puta se decepcionam a gente. Que ninguém é Super-Mulher o tempo todo.

Que mesmo com 30 anos a gente ainda pode dormir abraçada com o travesseiro num momento de carência ou saudade.

Que patrulha mesmo é aquela de quem não paga as nossas contas, não libera a micharia das idéias e acha que você tem que ser tão recalcada quanto eles. De quem acha, maniqueístamente, que amor é não conseguir ser você sem estar do lado de alguém.

Que tudo isso que acabei de escrever pode ser um bando de lugares comuns. Mas não tô nem aí se sou repetitiva. Tem coisas que a gente só aprende mesmo na base da exaustão.

Eu quero crer no amor numa boa
E que isso valha pra qualquer pessoa
Que realizar a força que tem uma paixão...
(Lulu Santos)

PS - Este é um post totalmente adaptável. Onde se lê "amor", pode-se ler "trabalho", "ideais", etc., ao gosto do freguês.

(07.03.2007)