É sabido, meu querido, que a maioria de nós em nosso tempo te considera realmente um herói. Talvez essa idéia, que lhes vêm tão forte e já de tão longe, não resistisse a uma reflexão mais cuidadosa, a uma indagação mais direta. Afinal de contas, porque és tu um herói? Tua conduta não condiz absolutamente com aquilo que convencionou-se Herói desde muito tempo, embora haja heróis de todos os tipos e para todos os gostos. Os heróis preferidos da multidão são aqueles que se destacam por seus grandes feitos, por terem sido capazes de desafiar a ordem, ou por a terem levado a cabo de maneira espetacular. Enfim, os preferidos são aqueles que foram capazes, com seus atos, de despertar arrebatamento e ardor em seus estados mais brutos, livrando seus admiradores, ainda que por breves instantes, de sua realidade obscura e opressora. Afinal, se eles não podem ou não são capazes de lutar, há quem possa, e isso é o quanto basta, não importando se esse alguém é real ou não - pois, ainda que não seja, ao oferecer-lhes consolo, se torna mais real que qualquer outra coisa, pois incorpora-se à vida de tal forma que chega a ser, por vezes, a própria vida.
Ora, sob esse aspecto, não haveria razão para que tu figurasses entre os principais heróis de nosso tempo. No entanto, não há quem o conheça que não guarde impressão favorável de ti. E por quê? Digo-lhe que os motivos que o fazem se destacar são absolutamente subjetivos e ao mesmo tempo fortes demais para que deles se duvide. Tuas ações encerram sempre um sentido oculto e maior, que tu mesmo não é por vezes capaz de definir, embora creia inteiramente nele. Talvez seja essa crença, e a segurança que emana dela, que atraia as pessoas e o torne digno da mais inteira confiança. Sim, pois suas ações, mesmo movidas por motivações às vezes obscuras, são realizadas à luz de uma união de fé e brandura rara em nossos dias. Essa calma, por vezes, garante e explica tudo. Talvez seja mesmo ela que permita às pessoas alcançar seu verdadeiro propósito, tão profundo e tão difícil de se traduzir em palavras. Por isso és considerado um herói, a despeito de nunca teres enfrentado nada ou ninguém pela força das armas, mas sempre pelos caminhos da ponderação. O fato é que, uma vez tendo escolhido a mansidão, tu nunca precisaste fazer uso da força bruta, e aí está o porquê de não ter sido considerado um covarde, mas um bravo, apesar de tudo. Teu heroísmo não está em promover a ordem à força, mas sim em fazer com que ela não deixe de existir, ou ao menos não se esvaia completamente. Tua ação primordial ocorre antes, embora seja depois que ela vá se manifestar com toda a grandeza. E assim consegues, de maneira suave e quase natural, aquilo que por vezes os maiores lutadores da Terra não conseguem realizar.
Temo, porém, que tudo isso que agora exponho não seja inteiramente novo nem para ti nem para aqueles que o admiram, mas apenas a repetição de idéias já há muito discutidas. Afinal, hoje em dia compreende-se muito bem que recorrer às armas nem sempre é medida das mais eficazes. Além disso, como já disse, heróis existem de todos os tipos. E, finalmente, como posso colocar-te em campo oposto ao lutadores se tu também és um lutador? Tal confusão pode prejudicar-me na tentativa de explicar o que quero dizer. Ao procurar render-te uma homenagem, posso estar me expressando mal diante de ti, e assim tudo terá sido em vão.
Tal problema me remete a outra idéia talvez alheia ao momento, mas de que falarei por pertencer a teu campo familiar de questões. Vês como, muitas vezes, ao acreditar firmemente que estamos indo para o bem, corremos diretamente e de braços abertos para o terreno do mal. Nossa história está cheia de exemplos assim. Aconteceu em Salém, nas Guerras Santas, na Inquisição, na Crucificação. É triste essa cegueira, tu bem o sabes. Em nenhum momento, durante os acontecimentos, duvida-se da validade do que se faz, e, se há alguém capaz de questionar, quase nunca tem forças suficientes para parar a disposição geral. Porém, depois de passada a febre é que enxergamos, tardiamente, o grau de estupidez dos nossos atos e então, atormentados, perguntamos: “Como fomos capazes de tal absurdo?”. E juramos que aquilo nunca mais irá se repetir, para que em seguida tudo aconteça novamente logo no dia seguinte, assim que saímos à rua e nos deparamos com outra situação qualquer que exija nossa ação e nossa razão.
Afinal, talvez não tenhamos a sabedoria necessária para discernir entre o certo e o errado, como crianças que ignoram o perigo do fogo. Mas se nos falta o discernimento, como saber então, meu caro, se nesse exato momento não estou eu também incorrendo em erro? Como saber se o caminho escolhido por mim leva realmente ao melhor? Não estarei eu correndo o risco de, ao refletir amanhã sobre o mesmo assunto, acordar sob arrependimento? E, mudadas minhas disposições, estarei eu então com a razão? Devo eu realmente seguir a algo ou a alguma coisa? Se sim, então a quem devo seguir? À ponderação e vagar do correr dos dias, que por vezes constituem todas as minhas aspirações? Ou à tempestade que me toma de tempos em tempos, e segundo a qual seria capaz, num momento, de desistir de tudo, mesmo que em seguida tivesse que recomeçar do início e sozinho?
Sinto que me perco novamente em considerações inúteis, meu caro, bem o vês. Porém, creio que acabo de compreender mais uma vez o porquê de seres um herói. Penso que tu conseguiste encontrar o equilíbrio entre essas forças todas. Todos procuram a liberdade através da revolta, da busca ansiosa de independência, do rompimento com todo o passado. Mas tu, para se desenvolver, escolheste exatamente as vias opostas. Valorizas teus laços e raízes, sem no entanto tornar-se escravo deles – o que, em geral, é o que acaba acontecendo aos que deles tentam fugir. Tu não te levantas contra o passado, mas o torna parte de ti, sem se revoltar contra o que te produziu. Cultivas tuas recordações, se reconcilia com teus erros, por mais dolorosos que sejam. Tens dúvidas, decerto, mas não permite que elas te arrastem à derrota. Resgatas o que de bom ficou para trás, tirando de lá as forças para que não te percas no dia de hoje. E, dessa forma, consegues construir o presente em paz e de acordo com o que de melhor há em ti. És confiante, sem ser ingênuo, e prudente, sem que isso lhe paralise a iniciativa; és calmo, não por apatia, mas por segura crença.
Seria bom se também eu pudesse reter, da mesma forma e com a mesma intensidade, todo o equilíbrio que demonstras. Em alguns aspectos acho-me semelhante a ti, mas não imagino que seja isso suficiente para que eu tenha muito a te oferecer. Tenho, como todos, o forte e subjetivo sentimento de admiração que tanto me aproxima de ti, e talvez algo de mais intenso, profundo e singular, que não encontra explicação exata. Como seria bom, meu querido, se pudesse levar comigo essa fé e essa confiança, que encontro em ti, durante todos os instantes da vida! Tua lembrança ajuda-me nisso, sempre que necessário. Porém, há momentos em que não se pode evitar o conflito e a dúvida em um espírito enfraquecido. E nessas horas, meu caro, peço-te que venhas, com tua presença serena, com tua força capaz de afastar toda a dor e todo o medo, e me sustenha. Tire-me as vestes, ponha-me para dormir e depois vele meu sono. Em seguida, deite-se também, compartilhe de meu descanso e esteja por perto. E então, ao acordar, estarei novamente em paz e terei voltado, mais uma vez, a acreditar na beleza da vida, na força do bem e na luz da verdade.
(Em algum dia de 1997)