Eu me lembro de quando era criança e pedia para que você pegasse em
minhas mãos e me rodasse no ar. Ainda hoje, quando me lembro de você
mais demoradamente, é essa a imagem que me vem à mente. Mesmo depois de
todos os anos, surpresas, castigos e retomadas que todos passamos. Mesmo
depois de tão mais marcantes coisas e acontecimentos no nosso caminho.
Nos
meus raciocínios infantis, você era para mim sinônimo de um homem alto,
um dos homens mais altos do mundo, que não falava muito mas que tinha
uma risada bonita e um gesto afetuoso sempre pronto. Eu, afeita a
silêncios já desde pequena, não estranhava. Gostava da Taubaína
oferecida em copo americano, do cheiro de casa do interior em férias e
das palavras germanas que falávamos à guisa de bom dia, boa noite, por
favor e obrigado e que você gostava de responder. Há muito mais, muito
mais do tempo em nós do que podemos imaginar.
E foi o tempo que
me mostrou um dia, com certo espanto, que talvez você não fosse o homem
mais alto do mundo. Que afinal eu já conseguia olhar para você sem me
perder em elevações. Seria eu que estaria mais alta ou você que
encolhia? Por muito tempo achei que você havia encolhido. Encolhido na
raiva e na insensibilidade de quem, numa palavra, consegue magoar um
punhado de pessoas muito importantes em um momento de dor. Por um tempo,
por anos, concluí que não conhecia você. Que ninguém havia conhecido de
verdade, que é possível passar a vida inteira sem conhecer alguém de
verdade.
Eu, na minha dor compartilhada, nesses momentos
incompreendi. Como o acusava de ter feito um dia. Mas a verdade, a
verdade maior, é que nunca poderemos compreender o Mistério. O Mistério
que habita em nós por trás dos horários, das convenções sociais, daquilo
que o padre falou, daquilo que achamos que é certo porque é o que
esperam de nós. Daquilo que nós mesmos esperamos de nós. É impossível
conhecer o Mistério que nos surpreende na curva do caminho, que nos
angustia, nos divide e faz viver. O nosso Mistério. Quanto mais o
Mistério de outra pessoa. Ainda que haja muito em nós desse outro, que
ele nos tenha doado a própria vida, histórias, tradições, células.
O
seu Mistério eu nunca conhecerei. A maneira como enfrentou as
travessias desde que nasceu. Como construiu sua alma e qual o quinhão do
mundo nessa construção. O que pensou, sentiu, perdeu, a vontade e o
sentimento das escolhas que fez. As lágrimas que derrubou antes e
durante a vida e as vidas que viveu. Posso apenas ter uma pista, uma
tênue idéia por trás dos discursos, das rabugices e dos temas de um
cotidiano novamente próximo, passada a tempestade. Pelo olhar de ternura
de quem não sabe como falar certas coisas, já entrado em tantos anos.
Pelas mãos postas em torno da cabeça, a atenção constante, as músicas, a
discreta obstinação. Mas também pela certeza de que no fundo, tanto os
desvios de percurso quanto as voltas ao lar foram causados por esse
mesmo Mistério que levamos dentro, grandioso e inexplicável, muitas
vezes impossível de ser expresso fora de tantas caixinhas perdidas pela
casa e pelo tempo.
Por isso, num dia como hoje, a única coisa em
que consegui pensar ao encarar seu olhar tão profundo, um olhar dolorido
e quase infantil, foi naquelas orações de quando era criança. Nada de
grandes meditações, mentalizações ou filosofias. Mesmo depois de todas
as mudanças e idas e vindas do meu próprio ser em contato com seus
Mistérios. Mesmo bem-intencionada, tentando conter a covardia e o
sentimento que eu sabia que não ia conseguir dominar. Hoje, tudo em que
eu pude pensar foi naquela fé simples, naqueles dias e noites em que
aprendi a unir as mãos e apenas agradecer ou pedir, como quem conversa
com anjos trazendo presentes pelos braços.
Hoje, eu pensei
naqueles dias e naquele cheiro de casa de vó da minha infância. E pedi
que você esteja bem, esteja acompanhado e agasalhado, que possa dormir
tranquilo e que mãos boas estejam prontas para te amparar. Pedi paz para
o seu coração, e que você esteja leve, como eu ficava quando você me
rodava no ar presa pelas suas mãos. E eu me sentia um pouco mais perto
do céu, de onde você me olhava, o homem mais alto do mundo.
(17.10.2009)
sábado, 17 de outubro de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário