sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Fora do tempo

Às nove horas e quinze minutos do dia 7 de agosto, terça-feira, o acaso me pegou desprevenida. Eu acabava de ganhar a rua, emergindo do metrô, mas ainda imersa em preocupações. Três, pelo menos, que me roubavam a paz naqueles dias. Misturando-se a elas, iam pensamentos mundanos: o happy-hour do dia seguinte, a blusa que eu usava naquele dia pela segunda vez, os cartazes do curso de inglês na parede, o bilhete único ainda descarregado, os presentes para o final-de-semana. E a visão do ônibus que eu deveria pegar, parado na esquina, esperando o sinal abrir. Separando-me do ponto onde ele passaria, uns vinte metros e a Rua Augusta.

Decido ganhar tempo. O tempo é precioso nesta manhã. Posiciono-me entre as pessoas que esperam para atravessar a Augusta. Tento ficar entre as primeiras da fila. O trânsito é pesado. Quando os carros param de subir a rua, dou um passo. Viro meu pescoço para olhar para o outro lado. Vejo algo se avolumando a milímetros. Não tenho tempo de registrar o que é. Ouço uma pancada surda. Ouço também gritos atrás de mim.

Algumas pessoas me ajudam a deitar no chão. Uma moça segura minha mão, fazendo perguntas para me manter consciente. Um rapaz grita para que a moto pare. Um bombeiro toma nota do meu nome, do telefone da minha família. Olho para cima e vejo, de baixo, os ônibus e carros me contornando, tentando ganhar a Paulista que está logo ao meu lado. Uma pequena multidão ao redor, e os prédios se avolumando sobre mim. O céu é claro.

Foi um segundo. Minha mente ainda tenta formular alguma pergunta. Mas as preocupações de quinze minutos atrás, dentro do vagão do metrô, parecem pequenas. Ao ver o bombeiro rasgando minha calça, para dar espaço à perna, de repente me questiono se voltarei a andar. Tento guardar a imagem do céu e da Paulista na cabeça, como se fosse possível congelar o instante, congelar a vida para recomeçar depois do intervalo, do ponto em que ela parou, antes do sinal, do ônibus na esquina. De fechar os olhos e abri-los do outro lado da rua, entrando no ônibus, descendo a Brigadeiro, chegando no trabalho, abrindo o computador.

Inaugurei o plantão do HC naquele dia. Isso deve ser um sinal otimista para o hospital, considerando que já são quase dez da manhã, comento com o Bombeiro que me tira do Resgate. Ele não parece concordar. Talvez pela quantidade de pessoas, já àquela hora, sendo examinadas (estariam lá desde o dia anterior?). Deitada, olhando para o teto e sendo revirada por meia dúzia de residentes, não vejo nada. Mas ouço alguns sons que demonstram pessoas lutando, lutando bem mais do que eu. Mais tarde, Fê e André me confirmariam, com olhos apreensivos, esse cenário.

Permaneço no Pronto Socorro das 10 da manhã até as 4 da tarde. A sede, a fome e a febre vão se tornando imperceptíveis. E aprendo, em instantes, a confiar como nunca na vida. Sou examinada em partes do corpo que eu nem sabia que existiam. Das minhas roupas, só sobram as botas.

Dali, caminho óbvio, a ortopedia. Novos exames. Dor incomensurável. E o medo da operação começa a se transformar em reza, para que chegue logo, para que tudo aquilo acabe. Acaba por volta das 22h, quando vou ao quarto dormir, pernas sedadas, novos elementos no corpo. Cada parte do nosso corpo conta uma história.

Foi uma noite tranqüila, a primeira noite fora do tempo. A ela, se segue agora um desfile interminável de horas suspensas, de horas da verdade. De reaprender a usar o corpo. De não achar posição na cama. De ver o tempo passar e se indagar sobre o mundo lá fora. De lembrar viagens, passeios e pensar na maravilha de se locomover, de ganhar o mundo. De contar os dias para adivinhar quando a vida voltará ao normal.

Mas também de ver o sol pela janela, agradecer por ele aparecer na minha cama de manhã. De admirar a minha perna direita, brava guerreira trabalhando por duas, prestando sustentação inestimável. De observar o milagre que é um membro nosso perfeito, feito para nos fazer viver. De ver e festejar os centímetros a menos de inchaço na perna esquerda, de tremer com os pontos do machucado. De criar coragem para dobrar o joelho em 90 graus na fisioterapia, de fazer trabalhar o pé preguiçoso e assustado. De dizer “vai, você é capaz”. De me sentir feliz porque, afinal, estou aqui, podendo falar sobre isso depois daquele segundo em que não vi nada. Estou sentada em frente ao computador, escrevendo esse texto e chorando pela primeira vez desde que tudo aconteceu. E que no futuro vou lembrar disso como um tempo de pausa fora do tempo.

Na última semana, direta ou indiretamente, tive contato com muitos tipos de dramas humanos. O fato de ter um bom convênio médico me garantiu atendimento imediato no melhor hospital do país. Poupou-me de colocar pregos nos joelhos e de ficar imóvel numa cama por pelo menos três meses. Impediu que eu ficasse esperando num corredor de hospital por atendimento, que eu pudesse ter um quarto só para mim, que minha família e amigos estivessem ao meu lado – e que, mesmo assim, eu rezasse para que cada hora passasse rápido e eu pudesse ir para casa. Tive uma equipe de especialistas a meu dispor e enfermeiras disponíveis e cuidadosas, além de um médico atencioso e competente.

Todo o contrário, todo o desengano, a miséria e as exigências de provas sobre-humanas de paciência, tenho visto desfilar diante dos meus olhos. Em algum relato, em alguma imagem, em alguma história. De gente que teve a vida modificada para sempre. De pessoas que não tiveram ajuda, atenção ou a chance de atendimento adequado. E quando a impaciência me invade, quando a dor dos curativos vem de novo, quando acho que estou perdendo muito, tento guardar essas impressões para usá-las no futuro – na compreensão de tantos e piores dramas que insistimos em não ver, preocupados com nossos problemas soberanos.

Eu tenho um corpo perfeito que está se recuperando bem, graças à possibilidade que sempre tive de me cuidar, e da presença de uma família abençoada que me ama. Tenho amigos que estão ao meu lado, me dando muito mais do que eu poderei um dia retribuir. Tenho uma vida que está sob minha responsabilidade, sobre a qual somente eu posso responder. E quando precisei de ajuda, as pessoas estiveram ao meu lado o tempo todo. Pessoas conhecidas e desconhecidas, que não se recusaram a olhar para o lado quando viram que era preciso.

Esse momento, o momento presente, é tudo que temos. Que esse tempo fora do tempo não me deixe esquecer disso nunca mais – e que eu nunca mais olhe para alguém com o olhar de distanciamento que nos invade um pouco mais a cada dia. O distanciamento não existe quando a vida está em primeiro plano. E ela, apesar de nossas ilusões, está em primeiro plano sempre. Apesar das regras e preocupações de todo dia. A única coisa que podemos fazer pelos outros, e a maior, é compreender – daí vem tudo mais que precisamos saber. Hoje, a cada dia, tento compreender os sinais que meu corpo me transmite em silêncio. Talvez a vida nos mande sinais de recuperação a todo momento. É preciso olhar em volta para ver.

E que quando estiver bem cansada, ainda exista Amor para recomeçar.

(17.08.2007)

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